A MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA – UM OLHAR PSICANALÍTICO.
Eliane Calheiros Cansanção*
Nos últimos anos venho observando que as crianças acompanhadas por seus pais ou responsáveis à procura de atendimento psicológico e psicopedagógico em meu consultório, com descrição de queixas, sintomas voltados para o comportamento infantil, dificuldades de aprendizagem e sofrimento psíquico encontram-se na sua maioria fazendo uso de psicofármacos como forma de alívio imediato dos sintomas.
Hoje torna-se uma questão relevante pensar nos modos de como se está lidando com os sintomas, alertando aos pais, às escolas e à sociedade sobre o excesso de medicalização que vem sendo utilizado, sem critérios bem definidos, que não levam em consideração os fatores sociais e culturais do momento.
O mundo, de algumas décadas para cá, vem passando por profundas e rápidas transformações decorrentes do fenômeno da globalização, com mudanças sociais na economia, na cultura, na política, através das novas tecnologias, formas de comunicação e modelos familiares, levando a sociedade e o homem a enfrentar grandes desafios e ir construindo novos caminhos frente a diversidade. Diante destes fatos o mundo vem mudando os modos de lidar com os organismos, a corporalidade e as representações as quais refletem significativamente na subjetividade do homem, no seu modo de pensar, sentir e viver.
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o excesso de medicalização na infância, avaliando suas consequências no desenvolvimento infantil, destacando, a partir de um olhar psicanalítico, outras possibilidades de atendimento clínico sem, necessariamente, medicalizar.
Nos atendimentos clínicos no consultório, as queixas, os sintomas que são relatados pelos pais ou responsáveis da criança apresentam características de desatenção, hiperatividade, ansiedade, inquietação, dificuldade de aprendizagem, impulsividade, oposicionismo, compulsividade e desconexão, os quais são motivos do aumento na frequência de consultas psicológicas, psiquiátricas e psicopedagógicas.
Vive-se um momento de busca incessante, de explicações orgânicas, genéticas e comportamentais para os sintomas apresentados e a existência de uma “patologização” da
* Psicóloga, psicopedagoga e pedagoga sistêmica
infância com os novos diagnósticos que surgem e, consequentemente, o aumento da medicalização como uma das formas de resolver a demanda do sofrimento psíquico e dos novos modos de comportamento, deixando de analisar a origem, a causa, o sentido do sofrimento, o mal estar do sujeito. […] Entre o temor à desordem e a valorização de uma competitividade fundada exclusivamente sobre o êxito material, muitos sujeitos preferem entregar-se voluntariamente a substâncias químicas a falarem de seus sofrimentos íntimos […]. (ROUDINESCO, 2000).
As estatísticas vêm apresentando um aumento do consumo de psicofármacos e com o novo DSM-V um aumento maior do número de transtornos na infância, entre eles o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), o Transtorno Desafiador de Oposição (TDO), o transtorno bipolar, o Transtorno Disrupitivo de Desregulação do Humor (TDDH) e o transtorno de espectro do autismo.
Oliveira (2011) refere-se à a cultura da sindrominização a utilização demasiada de classificações ou categorias psicopatológicas para descrever os sentimentos e atitudes do sujeito, desconsiderando o critério universal para os seres que é o da diversidade.
Constato nas escolas o uso demasiado de medicalização em relação ao déficit de atenção e hiperatividade. O Brasil registrou um aumento de 775% no consumo de ritalina em dez anos (Saúde. Estadão, 2014), ou seja, ocorre um uso sem uma análise mais detalhada da origem dos sintomas na infância, sendo preciso ser mais crítico quanto aos comportamentos apresentados pela criança hoje. Vale ressaltar que os psicofármacos, quando utilizados de forma criteriosa e responsável, são grandes aliados contra o sofrimento humano.
No que se refere às crianças, são exigidas muitas demandas e as mesmas são contraditórias, como exemplo a atenção. A escola fala para a criança “prestar atenção” e os meios de comunicação colocam que a criança tem que estar ligada em tudo, quase que simultaneamente.
Os problemas de atenção podem ser uma resposta saudável a uma educação que não acompanha as mudanças do mundo, sendo necessário um espaço de diálogo, uma parceria entre a educação e a saúde.
O cotidiano vivenciado pelas crianças hoje apresenta modelos determinados, com enquadre e roteiros definidos, como passeios a shopping center, viagens etc., que se tornaram moda deixando de ser um espaço mais livre, de incertezas. Antes os passeios eram nas praças, praias, parques, casa de parentes, ou seja, permitia-se planejar, sonhar, esperar, criavam-se expectativas, hoje está tudo definido, ou melhor, pré-definido, não se pode fugir às regras e ao mesmo tempo surge a “falta de limite”, de atenção.
Os sintomas contemporâneos da família se voltam para a complexidade de comunicação ou falta dela. As crianças hoje parecem não estar no seu papel, passaram a ser o ponto central da família, falta um lugar de ser criança, uma hierarquia familiar. As famílias que se constituem hoje são cada vez menores e os cuidados paterno e materno se encontram terceirizados ocorrendo um distanciamento dos pais em relação aos filhos.
Diante de tantos desafios os sintomas tendem a surgir nas formas mais diversas nas crianças e os mesmos nunca vão deixar de existir, porque toda criança normal apresenta sintomas.
Percebo, na prática, clínica que a utilização de outras estratégias a médio ou longo prazo contribuem significativamente no trabalho com crianças com os atuais sintomas que apresentam sem, necessariamente, ter que medicar e destaco a teoria de Dolto como uma destas abordagens com crianças.
Foi na França, a partir dos anos 40, que Françoise Dolto, influenciada em seus estudos por Lacan, começou a se dedicar ao atendimento com crianças voltado para a psicanálise, sendo uma das pioneiras nessa área ao desenvolver importante experiência clínica.
Halmos (1989 apud SOLER e BERNADINO, 2012, p.209) ressalta que Dolto, em sua teoria e prática, propôs um lugar novo às crianças ouvindo-as, em lugar de falar delas ou falar por elas; esse lugar de fala e escuta clínica da criança abre um espaço favorável ao tratamento infantil.
Sua teoria psicanalítica para o atendimento clínico com crianças está centrada na escuta do inconsciente e inclui a posição parental no tratamento. Assinala o valor revelador dos fantasmas e do estudo das projeções fantasmáticas dos pais, remontando a até três gerações.
Segundo Dolto (1980, p. 14), os sintomas da criança “tratam-se de distúrbios reativos a dificuldades parentais, a distúrbios entre irmãos ou do clima inter-relacional do ambiente. Afirma a hipótese de que a criança adoece do inconsciente dos pais, colocando-se à escuta desse sintoma, trabalhando também com os pais como analista e não terapeuta de família.
O método utilizado do brinquedo, do desenho e da modelagem faz com que a criança expresse seus medos, angústias e conflitos abrindo, portanto, um espaço de conversação de acordo com o que era produzido pela demanda da criança e não de interpretação analítica (associação livre), solicitando a criança que fale de seu desenho, suas produções.
Cifali (1989 apud SOLER e BERNADINO, 2012, p.210) relata que Dolto fazia críticas em relação à terapêutica que coloca a criança numa situação de intimidação ou de consumo de remédios, que evitam que a criança expresse seu desejo a seu modo.
Constato que a teoria e prática de Dolto na atualidade é importante para um trabalho psicoterapêutico com crianças por apresentar um olhar que se volta para a singularidade infantil; ao dar um lugar à criança e seus pais, tratando a criança juntamente com sua família; ao considerar o sintoma infantil um sintoma dos pais, da sua relação com o meio onde interage; ao aceitar as crianças em seus conflitos respeitando sua diversidade sem desejar modificá-las, moldá-las, abrindo espaço de escuta analítica e expressão de sua subjetividade de acordo com a necessidade de cada uma sem rotular, demonstrando sua crítica ao consumo de remédios pelas crianças. Trata-se, portanto, de uma psicanalista sensível, brilhante e atual, por seu trabalho criativo com a criança e a psicanálise.
O diagnóstico, na atualidade, precisa ser repensado levando em consideração a construção da subjetividade das crianças, a subjetividade dos pais, as causas dos sintomas do sofrimento psíquico evitando rotular e medicar as crianças sem que tenham sido escutadas.
Untoiglich (2009) aborda em seus escritos sobre o tema “Patologias Atuais” que se faz necessário questionar o que se diz ser “patológico” e o que se faz referência com o atributo “atual” neste momento de mundo, olhando para um contexto social e histórico, com base numa perspectiva psicanalítica que reflete nas possíveis formas hoje de ser pais.
Faz referência aos problemas de estruturação psíquica no período da infância e às mudanças desde a vida cotidiana, com as características que apresentam os sintomas atuais.
As intervenções a serem realizadas com as crianças devem levar em consideração sua história, seu contexto social e seu sintoma, a partir de estratégias clínicas. Classificar somente como transtornos, desloca a criança do seu lugar, de onde possa falar o que sente e pensa, sobre sua subjetividade, incluindo também os pais no atendimento terapêutico
O mal estar na infância hoje tem suas características próprias, manifestam-se mais no corpo como reflexos do mundo contemporâneo, do significado inconsciente que a criança dá às situações vividas no seu cotidiano, resultando, portanto, em uma “patologização” e medicalização da infância, da vida com consequências que comprometem a criança no seu desenvolvimento, deixando de olhar para a mesma em sua singularidade, sem analisar a origem, causa e sentido do sofrimento.
O sintoma pode surgir como resposta da criança, do que o mundo lhe oferece, o qual representa a história pessoal de cada uma delas.
Hoje é urgente olhar para outras possibilidades de tratamento psicoterapêutico do sofrimento infantil a médio e longo prazo e cito a abordagem teórica de Dolto como uma das forma de mudar este olhar desmedicalizando ou minimizando o uso dos psicofármacos na infância, que alteram a química do cérebro em desenvolvimento, com benefícios de curto prazo, resultando em efeitos colaterais como perda de apetite, peso, insônia, apatia etc. e em alguns casos com risco de suicídio na adolescência.
A medicalização favorece mais a indústria farmacêutica, com seu poder na pauta de pesquisa e está sendo, reforçada na mídia, também como forma de controle do comportamento humano.
A psicanálise foi a primeira a fazer suas críticas sobre a medicalização na infância, as quais não foram consideradas e nos últimos anos começam a surgir críticas dentro da própria psiquiatria e o aparecimento de diversos artigos que abordam o tema alertando os perigos.
Ao concluir este artigo tenho a certeza da necessidade de um espaço maior de reflexão das pesquisas sobre a constituição do sintoma infantil na atualidade para se construir estratégias clínicas que sejam possibilitadoras de um trabalho mais eficaz, ético sobre o comportamento das crianças nas instituições família, escola e sociedade no século XXI e da contribuição da psicanálise para o mesmo.
Reafirmo que as crianças têm o direito de viver plenamente sua infância, brincando, descobrindo o mundo e se expressando de diferentes linguagens para seu desenvolvimento pleno.
REFERÊNCIAS
DOLTO, Françoise. Psicanálise Infantil. Filme. Direção: Elizabeth Coronel e Arnaud de Mezamat. Pais: França, 1994.
DOLTO, Françoise. Prefácio. IN: M. Mannoni. Primeira Entrevista em Psicanálise (15ª ed, p14) RJ: Campus.
DOLTO, F. Seminário de Psicanálise de Crianças. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (p.31)
OLIVEIRA, Ana Maria. R. A Sindromização Nossa de Cada Dia – In Navegar é Preciso, Clinicar não é Preciso (p.37). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.
ROUDINESCO, Elizabeth. Por que el psicanálise? Paidós. Bs. As. , 2000.
Saúde. Estadão/2014. Brasil registra aumento de 775% no consumo de Ritalina em Dez Anos. Disponível em: Saude.Estadão.com.br Acessado 11/08/2014.
SOLER, V. T. E BERNADINO, L.M.F. A Prática Psicanalítica de Françoise Dolto a partir de seus Casos Clínicos. Revista Estilos da Clínica, S. Paulo, V. 17, n:2, jul/dez. 2012, 206-207.
UNTOIGLICH, Gisela. Patologías Actuales em la infância (cap. 1) In: Patologías en la infância. Bordes y Desbordes em la infância y educación. (Colección Conjunciones) Noveduc: Buenos-Argentina,2009.